Confira aqui informações sobre TODAS as escolas de samba que desfilam na segunda-feira + o “verso a verso” dos sambas-enredo e seus significados! Para ver o post sobre as escolas e os enredos de domingo, clique aqui.
- Post escrito pelo colaborador Bernardo Pilotto.
*As escolas estão na ordem em que entram na avenida, junto aos horários previstos para início de seus desfiles. / Foto do post: desfile da Paraíso do Tuiuti no sábado das campeãs em 2018.
1- SÃO CLEMENTE (21h15)
Fundada em 1961, a G.R.E.S. São Clemente é uma escola tradicional da Zona Sul, especialmente do bairro de Botafogo e do Morro Santa Marta. Teve seu auge nos anos 1980, quando chamou a atenção com enredos críticos e politizados, alternando presença entre o Grupo Especial e o Grupo de Acesso. Atualmente está na sua maior sequência no Grupo Especial (desde 2011).
Neste ano seu enredo é uma reedição de 1990, quando a escola criticou a mercantilização do carnaval. Ainda que várias das críticas se mantenham atuais, várias delas ficaram descontextualizadas, devido ao fato de que hoje ninguém mais contesta um puxador (ou mestre sala) que muda de escola, por exemplo.
O carnavalesco é Jorge Silveira, um dos expoentes da nova geração. Assim como Leandro Vieira (Mangueira) e Jack Vasconcelos (Paraíso do Tuiuti), Jorge tem um discurso politizado e o entendimento de que arte é também um instrumento para a disputa de ideias na sociedade.
SAMBA-ENREDO
Vejam só
O jeito que o samba ficou (e sambou)
Nosso povão ficou fora da jogada
Nem lugar na arquibancada
Ele tem mais pra ficar
Abram espaço nesta pista
E por favor não insistam
Em saber quem vem aí
O samba começa explicitando a crítica ao processo de elitização dos desfiles, tanto em relação ao preço dos ingressos para assistir, quanto sobre os desfilantes. Registre-se duas questões: 1) o projeto original da Sapucaí previa uma geral onde hoje estão localizados as frisas (lugares com cadeira bem na beira do desfile); 2) do final dos anos 1980 e até meados dos anos 2000, as escolas priorizaram a venda de fantasias nas chamadas alas comerciais, que chegaram a ser a maior parte das alas das escolas. Isso encareceu o preço que se pagava para desfilar, afastando muita gente das escolas. Esse processo vem se revertendo nos últimos anos e hoje a maior parte das alas são as alas da comunidade, onde as fantasias são gratuitas mas só é possível desfilar se você comparecer todas as semanas para ensaiar (e é importante salientar que isso por si só também acaba excluindo muita gente).
O mestre-sala foi parar em outra escola
Carregado por cartolas
Do poder de quem dá mais
E o puxador vendeu seu passe novamente
Quem diria, minha gente
Vejam o que o dinheiro faz
Junto ao processo de elitização dos desfiles, o desfile das escolas de samba se profissionalizou. E isso fez com que vários segmentos e setores (como Comissão de Frente, Mestre de Bateria, Mestre-Sala e Porta Bandeira, Intérpretes, Diretor de Harmonia, etc) fossem profissionalizados e passassem, dessa forma, a serem contratados pelas escolas.
É fantástico
Virou Hollywood isso aqui (isso aqui)
Luzes, câmeras e som
Mil artistas na Sapucaí
O refrão faz uma crítica ao enfraquecimento dos quesitos de chão (harmonia, evolução, bateria) em troca do fortalecimento dos quesitos plásticos (alegorias, especialmente), que passaram a chamar muito mais atenção. Isso favoreceu as escolas com mais dinheiro. Também aqui voltamos a ver uma crítica pelo fato de desfilantes comuns terem sido substituídos por artistas. E nessa estrofe a São Clemente foi bastante vanguarda, visto que em 1990 (época original deste samba) nem havíamos tido ainda as alegorias humanas de Paulo Barros, o astronauta e outras novidades que chamaram atenção nos desfiles.
Mas o show tem que continuar
E muita gente ainda pode faturar
“Rambo-sitores”, mente artificial
Hoje o samba é dirigido com sabor comercial
Carnavalescos e destaques vaidosos
Dirigentes poderosos criam tanta confusão
Aqui a saraivada de críticas é direcionada aos compositores que fazem sambas para várias escolas, num processo quase industrial de criação, e também aos dirigentes da liga das escolas de samba, que costumam fazer conchavos, viradas de mesa e outras atitudes que fazem a disputa carnavalesca perder a credibilidade. Outro ponto também é o super poder dos carnavalescos, que hoje são as principais figuras das escolas.
E o samba vai perdendo a tradição
E o samba vai perdendo a tradição
Que saudade
Da Praça Onze e dos grandes carnavais
Antigo reduto de bambas
Onde todos curtiram o verdadeiro samba
Depois de muitas críticas ao carnaval atual, o samba faz uma referência a Praça XI, local de ebulição cultural do início do século XX e onde aconteceram os primeiros desfiles das escolas. Essa praça foi destruída para a construção da avenida Presidente Vargas em meados dos anos 1940.
2- VILA ISABEL (22h20)
Uma das mais conhecidas escolas de samba, a Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel foi fundada em 1946. Já foi campeã do carnaval em três ocasiões (1988, 2006 e 2013). É a escola de sambistas como Martinho da Vila, Seu China, Martnália, Paulo Brazão e Luiz Carlos da Vila.
Tem vários sambas-enredos conhecidos, como Kizomba (1988), Sonho de um Sonho (1980) e Festa no Arraiá (2013). Já teve enredos com temáticas politizadas, como reforma agrária, escravidão, Simon Bolívar, Miguel Arraes e a declaração dos direitos humanos. Desde que foi campeã em 2013 não conseguiu mais emplacar um bom desfile, tendo sido ameaçada de um novo rebaixamento por várias vezes.
Apesar de ter uma excelente ala de compositores (que conta atualmente com craques do gênero, como André Diniz e Bocão), o samba de 2019 contradiz essa história. O enredo homenageando Petrópolis e exaltando a figura da Princesa Isabel irá contrastar com o desfile que a Mangueira levará para a Sapucaí.
SAMBA-ENREDO
Viva a princesa!
E o tambor que se não cala
É o canto do povo mais fiel
Ecoa meu samba no alto da serra
Na passarela com os herdeiros de Isabel
O enredo faz uma aproximação entre a cidade de Petrópolis (fundada no meio da Serra dos Órgãos para ser um abrigo de clima ameno para a família Real brasileira durante o verão carioca) e a Vila Isabel, bairro da escola e que leva o nome da filha de D. Pedro II (e, portanto, neta de D. Pedro I, para quem a cidade de Petrópolis foi criada). O refrão faz uma síntese dessa aproximação.
Vila, te empresto meu nome
Fonte de tanta nobreza
Por Deus e todos os santos
Honre a tua grandeza
E subindo pertinho do céu
A névoa formava um véu
Lembrei de meu pai, minha fortaleza
Esculpida em pedras
Pedros e coroados
Com os seus guardiões
Protetores de raro esplendor
Luar do imperador
A primeira parte do samba se refere toda a esse encontro da Vila Isabel com a cidade de Petrópolis.
Meu olhar lacrimejou
Em águas tão cristalinas
Uma cidade divina
Bordada em nobre metal
A joia imperial
No refrão do meio temos uma referência ao luxo das construções de Petrópolis e também ao fato da cidade ter várias fontes de água (o que leva a cidade a ter várias fábricas de cerveja, como Bohemia, Itaipava e Ambev).
Petrópolis nasce com ar de Versalhes
Adorna a imensidão
A luz assentou o dormente
Fez incandescente a imigração
Referência ao fato de vários palácios da cidade terem sido inspirados no Palácio de Versalhes, nos arredores de Paris, que foi sede da família real francesa.
No baile de cristal o tom foi redentor
Em noite imortal
Floresceu um novo dia
Liberdade enfim raiou
O Palácio de Cristal, inaugurado em 1884, foi local da “Festa da Liberdade”, em abril de 1888, momento que a Princesa Isabel entregou 103 títulos de liberdade a escravos moradores da cidade. Isso aconteceu um pouco antes da publicação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888.
Não vi a sorte voar ao sabor do cassino
Segundo o dom que teceu o destino
O Palácio Quitandinha foi construído em 1941 para ser o maior cassino-hotel da América do Sul.
Meu sangue azul no branco desse pavilhão
O morro desce em prova de amor
Encontro da gratidão
Aqui temos um jogo de palavras com as cores da escola (azul e branco) e a referência ao sangue azul das famílias imperiais (um sinal de distinção perante aos demais humanos) e, novamente, uma referência ao encontro da Vila Isabel com Petrópolis.
3- PORTELA (23h25)
A G.R.E.S. Portela é a maior vencedora do carnaval carioca, com 22 títulos. Fundada em 1923, é a escola de Paulinho da Viola, Heitor dos Prazeres, Monarco, Zeca Pagodinho, Zé Keti, Candeia, João Nogueira, Waldir 59, Alcides Malandro Histórico, Noca da Portela, Natal, Paulo da Portela, Casquinha, Argemiro, Jair do Cavaquinho, Tia Surica e muitos outros ícones do samba brasileiro.
Atualmente, a escola se encontra em uma ótima fase, depois de passar anos de aperto. Foi campeã em 2017 (algo que não acontecia desde 1984) e a atual diretoria vai ficar marcada por fazer com que a escola retome um papel de vanguarda como instituição de cultura. A Portela é uma escola que sempre reivindica sua tradição e isso mais uma vez se evidencia esse ano no samba-enredo, que também exalta Candeia, Paulo da Portela e Natal.
O enredo de 2019, assinado pela carnavalesca super campeã Rosa Magalhães, fala sobre Clara Nunes, um desejo antigo de todos os portelenses. É uma das favoritas para ganhar o carnaval.
SAMBA-ENREDO
Axé, sou eu
Mestiça, morena de Angola, sou eu
No palco, no meio da rua, sou eu
Mineira, faceira, sereia a cantar, deixa serenar
Que o mar de Oswaldo Cruz a Madureira
Mareia, a brasilidade do meu lugar
Nos versos de um cantador
O canto das raças a me chamar
Essa primeira parte, em primeira pessoa, funciona como uma apresentação da Clara Nunes, a homenageada pelo enredo da Portela. Existem algumas referências a músicas consagradas pela cantora, como Morena D’Angola, Guerreira, O Mar Serenou e Canto das Três Raças e também aos bairros que são sede da Portela (Oswaldo Cruz e Madureira).
De pé descalço no templo do samba estou
É rosa, é renda, pra Águia se enfeitar
Ainda em primeira pessoa, esse trecho faz referência a participação descalça de Clara Nunes num desfile da Portela na Sapucaí e ao símbolo da escola, a águia. Há também uma referência às vestimentas da cantora, sempre com muitas rosas e rendas.
Folia, furdunço, ijexá
Na festa de Ogum Beira-mar
É ponto firmado pros meus orixás
Eparrei Oyá, Eparrei
Sopra o vento, me faz sonhar
Deixa o povo se emocionar
Sua filha voltou, minha mãe
O final da primeira parte e o refrão do meio trazem referências à religiosidade de Clara Nunes. Na produção artística de Clara Nunes, as referências às religiões afro-brasileiras extrapolam os ritmos e as letras das músicas e aparecem também na performance da artista em shows e aparições na TV, assim como no material de divulgação de seu trabalho como as capas e encartes do LPs. Eparrei Oyá é a saudação feita para Iansã, orixá senhora dos ventos e das tempestades.
Pra ver a Portela tão querida
E ficar feliz da vida
Quando a Velha Guarda passar
A negritude aguerrida em procissão
Mais uma vez deixei levar meu coração
Esse trecho do samba faz a aproximação de Clara Nunes com a Portela, fazendo referência a dois clássicos da música brasileira quando tratamos da azul-e-branco: Portela na Avenida (de Mauro Duarte e Paulo Cesar Pinheiro), que Clara Nunes gravou, e Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida (de Paulinho da Viola).
A Paulo, meu professor
Natal, nosso guardião
Candeia que ilumina o meu caminhar
Referências a três baluartes portelenses: 1) Paulo Benjamin de Oliveira (o Paulo da Portela) foi fundador da escola e um dos mais importantes articuladores das escolas de samba na primeira metade do século XX; 2) Natal, o homem de um braço só, foi presidente da Portela durante 19 títulos da escola; 3) Antônio Candeia Filho, cantor e compositor, é autor de vários clássicos do samba (incluindo O Mar Serenou, que ficou conhecido na voz de Clara Nunes). A referência a candeia ainda tem um duplo sentido, visto que a palavra também significa lâmpada formada por um recipiente, com um bico pelo qual passa a extremidade de um pavio, que se enche com óleo para queimar.
Voltei à Avenida saudosista
Clara Nunes desfilou na Portela várias vezes. Após sua morte, foi homenageada no enredo de 1984 (junto com homenagens a Paulo da Portela e Natal) e também esteve presente em 2012 (o enredo da Portela nesse ano foi sobre a Bahia) representada pela cantora Vanessa da Mata. O enredo de 2019 é, portanto, uma volta de Clara Nunes para a Sapucaí.
Pro Azul e Branco modernista eternizar
A referência ao modernismo está na sinopse do enredo, pois a carnavalesca fez uma ligação da Semana de Arte de Moderna (1922) com a fundação da Portela (1923). Há um quadro chamado “Carnaval em Madureira”, da pintora modernista Tarsila do Amaral.
Voltei, fiz um pedido à Padroeira
Nas Cinzas desta Quarta-feira, comemorar
A apuração do desfile é na Quarta-Feira de Cinzas. É o dia de comemorar a vitória da escola campeã do carnaval.
Nossas estrelas no céu estão em festa
Lá vem Portela com as bênçãos de Oxalá
No canto de um Sabiá
Sambando até de manhã
O samba vai terminando fazendo uma referência às estrelas da Portela (que tanto são os baluartes que já morreram e são sempre lembrando, quanto são as 22 estrelas pelos títulos do carnaval) e a um dos apelidos de Clara Nunes (sabiá). Há também a citação a Oxalá, que é a representação do pai dos orixás.
Sou Clara Guerreira, a filha de Ogum com Iansã
O último verso relembra a música Guerreira, um dos sucessos de Clara Nunes. Ogum é o orixá guerreiro. Iansã é também uma orixá forte. O verso final é uma referência a força de Clara Nunes.
4- UNIÃO DA ILHA (00h30)
Criada em 1953, a G.R.E.S União da Ilha do Governador é uma das mais simpáticas escolas do carnaval. Tem vários sambas-enredos que estão entre os mais populares da história, como Domingo, O Amanhã, É Hoje, Festa Profana e De Bar em Bar Didi Um Poeta. Apesar dessa tradição, seus sambas nos últimos anos tem sido bastante criticados e em 2019 não é diferente.
Nos anos 1970, foi aclamada pelo público em diversos carnavais, tendo chegado ao 3º lugar em 1977. Na época, seus sambas traziam uma novidade estilística bastante grande, sendo mais leves do que o modelo hegemônico daquele momento. Ao invés de falaram sobre a história, seus enredos falavam de temas simples do cotidiano, como o domingo e tentativa de adivinhar o futuro.
Sua bateria também é bastante tradicional, tendo formado diversos mestres de bateria que fizeram bastante sucesso no carnaval. Outra força da escola vem do seu puxador, Ito Melodia, filho do lendário Aroldo Melodia (que criou, entre outras, a expressão segura a marimba). Apesar dessa história importante, a escola encontra-se em baixa, devendo ser uma das escolas que vai lutar para não cair em 2019.
SAMBA-ENREDO
Vixi Maria! A Ilha a cantar
Traçando em meus versos a minha alegria
Menina rendeira me ensina a bordar
No céu emoção, no chão simpatia
O Sol
Onde aquece a inspiração é luz
Meu sonho
É vida, vento, brisa à beira mar
Ouvindo poesias de Raquel
Suspiro nas histórias de Alencar
E hoje desfolhando meu cordel
Das lendas que ouvi no Ceará
É doce, é fogo, sabor e prazer
Aroma no ar, plantar e colher
Eu moldei no barro
As recordações que vivi com você
O refrão principal e a primeira parte do samba se destinam a fazer a aproximação entre Rachel de Queiroz e José de Alencar. Os versos tem diversos elementos referentes ao estado de ambos (Ceará).
Violeiro toca moda à luz do luar
Sanfoneiro puxa o fole e convida a dançar
Vou pedir a Padim Ciço
Abençoe nosso povo
Essa fé vai nos guiar
Chão rachado, meu sertão
Peço a Deus pra alumiar
Terra seca que não seca a esperança
Arretada vocação de te amar
O sal da terra segue o meu destino
Sangue nordestino sempre a me orgulhar
A natureza cantada em meus versos
Traduz a beleza desse meu lugar
Linda morena vestiu-se de amor
Teceu a vida com fios dourados
Eu de chapéu de couro e gibão
Enfeitei o meu coração
E a moda desfilou ao seu lado
O refrão do meio e a segunda parte do samba trazem elementos genéricos referentes ao Nordeste, que poderiam servir a praticamente qualquer enredo sobre um tema desta região.
5- PARAÍSO DO TUIUTI (01h35)
Até o carnaval de 2018, a G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti, do bairro de São Cristovão, era uma escola praticamente desconhecida do grande público, apesar de ter sido fundada em 1952. Até então, alternava participações nos grupos de acesso (chegou a ser até do Grupo C), tendo participado do Grupo Especial apenas em 2001. Em 2016, foi campeã do Grupo de Acesso, conquistando a vaga no Grupo Especial, no qual teve uma participação mediana em 2017.
Para o carnaval de 2018, apostou num enredo acerca da escravidão, que trouxe também críticas ao atual modelo de relações de trabalho no Brasil. Ficou conhecida mundialmente por conta do Carro do Vampirão e conquistou o vice-campeonato.
Seu carnavalesco é Jack Vasconcelos, que tem ganhado destaque junto com Jorge Silveira (da São Clemente) e Leandro Vieira (da Mangueira). O enredo de 2019 vai trazer novamente críticas políticas, a partir da história do Bode Ioiô. Depois de vermos o Nordeste desfilar na Sapucaí a partir de perspectivas folclóricas, religiosas e rurais, teremos o Nordeste sendo retratado de forma urbana, o que é bastante raro.
SAMBA-ENREDO
O meu bode tem cabelo na venta
O Tuiuti me representa
Meu Paraíso escolheu o Ceará
Vou bodejar, láiá, láiá
O refrão principal aborda um dos temas do enredo: a representatividade política. Para isso, afirma que quem tem representatividade é a própria escola, a Paraíso do Tuiuti.
Vendeu-se o Brasil, num palanque da praça
E ao homem serviu, ferro, lodo e mordaça
Vendeu-se o Brasil, do sertão até o mangue
E o homem servil verteu lágrimas de sangue
Do nada, um bode vindo lá do interior
Destino pobre, nordestino sonhador
Vazou da fome, retirante ao Deus dará
Soprou as chamas do Dragão do Mar
A primeira parte do samba conta a história do bode ioiô, que saiu do sertão do Ceará e foi para a capital, no início do século XX. Vemos também uma denúncia da apropriação privada historicamente feita pelas elites que ocupam o estado brasileiro. Por fim, esse trecho tem uma referência a Chico da Matilde, o Dragão do Mar, um líder da luta pela abolição da escravidão (e que é abordado em mais detalhes no enredo da Mangueira). Vale reparar no uso das palavras serviu/servil. Devido a essa história de ir de um lugar do interior do Nordeste para uma capital e lá se tornar um líder político, fala-se que esse trecho também poderia se referir a Lula.
Passava o dia ruminando poesia
Batendo cascos no calor dos mafuás
Bafo de bode, perfumando a boemia
Levou no colo, Iracema, até o cais
Com luxo, não, chão de capim
Nasceu moderna, Fortaleza pro bichim
Pega na viola, diz um verso pra iô-iô
O salvador! O salvador!
Esse trecho aborda o cotidiano do bode em Fortaleza. Nesse momento, as elites locais buscavam disciplinar a cidade para que esta tivesse ares europeus. Nesse processo de modernização, foi proibido a circulação de animais soltos na rua. O bode ioiô sintetiza uma oposição a essa tentativa de gourmetização da cidade.
Ora, meu patrão
Vida de gado, desse povo tão marcado
Não precisa de dotô
Quando clareou o resultado
Tava o bode ali sentado
Aclamado o vencedor
A segunda parte conta a eleição do bode ioiô como vereador de Fortaleza, uma forma de protesto bastante original encontrada pela população local na época. Há também uma referência a música Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho.
Nem berrar, berrou
Sequer assumiu
Isso aqui, iô-iô, é um pouquinho de Brasil
O samba finaliza com a impossibilidade do bode assumir seu cargo. Ao dizer que isso é um pouquinho de Brasil, o samba sugere que essa prática (líderes populares sendo impedidos de assumir/impedidos de se candidatar) continua acontecendo.
6- MANGUEIRA (6h40)
A G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, fundada em 1928, é a mais conhecida das escolas de samba. Ao longo de sua história, contou com a participação de grandes personalidades da cultura brasileira, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Alcione, Carlos Cachaça, Chico Buarque, Nelson Sargento, Milton Gonçalves, Tantinho, Jamelão, Xangô da Mangueira, Delegado, Dona Neuma e Dona Zica. Já foi campeã 19 vezes, tendo conquistado seu último título em 2016.
É a única escola a desfilar na Sapucaí que tem uma batida única na sua bateria: não tem o surdo de segunda (ou surdo de resposta). O desfile de 2019 da escola certamente é o mais esperado do ano. Desde o processo de escolha do samba-enredo, todos os olhos do mundo do samba (e também de fora dele) se voltaram para a escola. Tudo indica que o desfile assinado pelo carnavalesco Leandro Vieira entrará para a história. A ditadura militar e o projeto Escola Sem Partido serão lembrados e criticados no desfile.
Apesar de ter tido problemas na organização do desfile pelo fato de seu presidente ter ficado preso durante cerca de um mês, a Mangueira é uma das favoritas para ganhar o carnaval.
SAMBA-ENREDO
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
O samba começa com uma invocação, mecanismo típico do gênero épico. É uma forma de chamar os ouvintes para aquilo que será contado pelo samba. No caso da Mangueira, há um chamado ao Brasil para que conheça sua própria história.
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Esses versos sintetizam o enredo, que busca mostrar a história que está escondida, que nunca é lembrada. É o exercício de escovar a história a contrapelo, tese defendida pelo filósofo alemão Walter Benjamin.
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Mais uma vez, o Brasil é convidado a se conhecer.
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
O enredo da Mangueira entende que o Brasil não foi criado em 1500 com a chegada dos portugueses. A abordagem do enredo é de que já havia muito Brasil antes da chegada de Cabral e cia e que este processo de colonização foi muito mais violento do que é normalmente retratado.
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Aqui é lembrado que existem pessoas, notadamente pobres e negras, que morreram em algumas batalhas para que uns poucos, notadamente homens brancos, fossem reconhecidos como herois. Um dos grandes exemplos disso é Duque de Caxias, tratado como heroi por sua atuação na Guerra do Paraguai.
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Esse trecho explicita qual é o Brasil que a Mangueira quer retratar. Um Brasil das mulheres, e dos mulatos. Há também uma referência a Confederação dos Tamoios, que foi uma aliança entre diferentes tribos indígenas, por volta de 1560, com o objetivo de combater os ataques dos portugueses. A liderança dos tamoios, Cunhambembe, será retratada em uma das alas do desfile.
Brasil, o teu nome é Dandara
Dandara foi uma das líderes do Quilombo dos Palmares e se suicidou após ser presa, se negando a voltar a condição de escrava. Descrita como uma heroína, Dandara dominava técnicas da capoeira e teria lutado ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas consequentes dos ataques a Palmares, quilombo estabelecido no século XVII na Serra da Barriga, situada na então Capitania de Pernambuco em região do atual estado de Alagoas. Dandara será representada no desfile pela cantora Alcione. Zumbi, esposo de Dandara e igualmente líder quilombola, será representado pelo cantor Nelson Sargento.
E a tua cara é de Cariri
Movimento de resistência à dominação portuguesa que ocorreu entre 1683 e 1713, a Confederação dos Cariris se estendeu pelos territórios do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um Dragão do Mar de Aracati
O samba faz uma crítica a exaltação da figura da Princesa Isabel como a libertadora dos escravos, com a lembrança de que aconteceram muitas lutas e revoltas negras para que a escravidão chegasse ao fim. Como alternativa a figura da Princesa, o samba cita Chico da Matilde, o Dragão do Mar de Aracati. O jangadeiro liderou o movimento abolicionista no Ceará e foi pioneiro no país, recusando-se a transportar para os navios negreiros os escravos vendidos para o sul. Chico da Matilde tinha 42 anos quando, em 1881, deflagrou greve e impediu o mercado escravista no Porto de Fortaleza de funcionar durante três dias. O cearense nasceu em 15 de abril de 1839, em Canoa Quebrada, Aracati.
Salve os caboclos de julho
Na Bahia aconteceu uma guerra pela independência do Brasil após o 07 de setembro de 1822. Essa guerra foi liderada pelo Caboclo e pela Cabocla. O Dia da Independência da Bahia ou Dois de Julho é um feriado estadual baiano celebrado no dia 2 de julho de cada ano. A data comemora a vitória sobre as forças coloniais na guerra de independência, expulsando os portugueses de Salvador no dia 2 de julho de 1823.
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Referência a quem lutou contra a ditadura civil-militar de 1964-85.
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês
Nesse trecho o samba dá uma pista do que se fazer: é preciso ouvir o povo, deixar ele ser protagonista. Aqui o povo é representado através das Marias (nome de muitas brasileiras) e Marielles (moradora da favela que conseguiu entrar na faculdade e posteriormente se elegeu vereadora, por conta de sua luta pelos direitos humanos) e a luta negra é novamente lembrada na citação a Mahins e malês. Luísa Mahin, ex-escrava de origem africana, radicada no Brasil, foi uma das líderes da Revolta dos Malês, um levante de escravos na cidade de Salvador, que aconteceu na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835. O movimento ganhou este nome devido aos negros de origem islâmica que organizaram o levante. Maria também é uma referência a Maria Felipa (também conhecida como Maria Marisqueira), que fez parte do movimento dos caboclos de julho na Bahia.
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
O enredo e o samba não seriam coerentes ao falar da história não contada do Brasil se não se referissem a história e a personagens não contados do próprio carnaval. Por isso aqui são lembrados os trabalhadores (figurinistas, pedreiros, aderecistas, costureiras, etc) das escolas de samba, verdadeiros herois dos barracões.
Dos brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa as multidões
Leci Brandão, atualmente com 74 anos, é cantora e compositora e foi a primeira mulher a fazer parte da Ala dos Compositores da Mangueira, ainda nos anos 1970. É deputada estadual (pelo PCdoB-SP) desde 2011. Deverá vir representando Luisa Mahin no desfile. José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, foi intérprete de samba-enredo na Mangueira de 1949 a 2006. Faleceu aos 95 anos em 2008.
Leia aqui outro post apenas sobre a Mangueira, os ensaios da comunidade e o samba-enredo. (Escrito por Juliana Goulart, autora-editora do Vida Carioca, que vai desfilar numa ala da comunidade da Mangueira neste carnaval).
7- MOCIDADE (03h45)
Criada em 1955, a G.R.E.S. Mocidade Independente de Padre Miguel é maior escola de samba da Zona Oeste. Já foi 6 vezes campeã, sendo a última em 2017 (título dividido com a Portela). Depois de alguns anos de ostracismo (passou anos sem participar do Desfile das Campeãs), a escola vem tendo destaque do carnaval de 2017 pra cá, especialmente pela qualidade de seus sambas-enredo.
Entre seus destaques está a bateria. Foi lá que foram criados o surdo de terceira, por Tião Miquimba, e a paradinha, pelo Mestre André. Por muito tempo, a Mocidade teve a fama de ser uma escola por trás de uma bateria, tal o destaque que essa ala tinha. Em 2019, vem pra avenida com enredo sobre o tempo, assinado pelo carnavalesco Alexandre Louzada. É uma das favoritas para ganhar o carnaval.
SAMBA-ENREDO
Senhor da razão, a luz que me guia
Nos trilhos da vida escolhi amar
Estrela maior, paixão que inebria
Eu conto o tempo pra te ver passar
O refrão principal faz uma referência a própria escola, que tem como símbolo uma estrela. O fato do samba referir-se muitas vezes a própria escola é, inclusive, uma das críticas feitas a ele, visto que é difícil saber se estamos ouvindo um samba-exaltação da escola ou um samba-enredo cujo tema é o “tempo”.
Olha lá, menino tempo
Tenho tanto pra contar
Era eu, guri pequeno
Pés descalços, meu lugar
Quando um toco de verso (ôôô)
Semeou a poesia (ê láiá)
Eu colhi a flor da idade
Vi na minha Mocidade
O raiar de um novo dia
Esse trecho faz a aproximação entre enredo e escola. A palavra toco tem duplo significado, visto que Toco foi um compositor da Mocidade, autor de 10 sambas-enredo entre 1957 e 1991, inclusive dos títulos de 1979, 1990 e 1991.
Baila no vento, deixa o tempo marcar
Nas viradas dessa vida
Vou seguir meu caminhar
Ah! Quem me dera o ponteiro voltar
E reencontrar o mestre na avenida
O refrão continua com essa aproximação entre enredo e escola, representada pela citação a José Pereira da Silva, o Mestre André, inventor da paradinha.
Desmedido coração
No contratempo dessa ilusão
Ora machuca, ora cura dor
Do meu destino, compositor
Tempo que faz a vida virar saudade
Guarda minha identidade
Independente relicário da memória
Esse é um dos poucos trechos do samba em que o tema do enredo é abordado sem referências explícitas a escola.
Padre Miguel, o teu guri já não caminha tão depressa
Mas nunca é tarde pra sonhar
Vamos lá, a hora é essa!
Novamente temos referências sobre a escola: o bairro de sua origem (Padre Miguel), a sua idade (a escola foi criada em 1955), a um dos seus sambas mais conhecidos (Sonhar Não Custa Nada, vice-campeão em 1992) e ao grito de guerra (“A Hora É Essa”) de Wander Pires, atual puxador e também puxador nos dois últimos títulos da escola (1996 e 2017).
Para conferir todas as escolas de samba que desfilam no domingo, 03 de março de 2019, clique aqui.
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