A Estação Primeira de Mangueira vem com um enredo sensacional em 2019! “História Pra Ninar Gente Grande” propõe uma forma mais justa de contar a história do Brasil, valorizando pessoas que fazem parte de minorias e as colocando no lugar que merecem – de verdadeiros heróis brasileiros. E justamente nesse momento tão singular, terei o enorme privilégio de desfilar na Mangueira! É tanta emoção que fica difícil descrever, mas esse texto é uma tentativa de explicar um pouco o que venho sentindo nos ensaios da escola. No final da matéria, há a letra da música e breve explicação de suas referências. 

Eu não nasci no Rio de Janeiro. Sou gaúcha e morei em Porto Alegre pela maior parte da minha vida. Me mudei para o Rio há quase cinco anos, me identifiquei muito com o estilo de vida da cidade e me apaixonei pela cultura carioca, que acho bem diferente da cultura do meu estado de origem. Especialmente quando se trata de carnaval! O carnaval aqui tem outro sentido… Minha sensação é de que, a cada ano que passa, vou percebendo as nuances, aprendendo e entrando um pouco mais nesse turbilhão que é o carnaval carioca.

Neste ano, estou tendo uma oportunidade incrível: vou desfilar na Mangueira! E não é só isso. Vou desfilar numa ala da comunidade da Mangueira e por este motivo compareci aos ensaios da comunidade toda semana ao longo dos últimos meses. E ainda mais, vou desfilar na Mangueira num ano que o samba-enredo está fazendo história – ou melhor, o samba-enredo está reescrevendo a história do Brasil, lembrando que são as minorias que fazem o nosso país e propondo a necessária valorização de pessoas que verdadeiramente lutaram (e lutam) por uma nação mais justa.

Não é a primeira vez que desfilo no carnaval (mas é a primeira na Mangueira) e já assisti aos desfiles na Sapucaí algumas vezes. Mas esta vez é muito diferente e especial… Ter a oportunidade de estar junto da comunidade e sentir a energia dos ensaios é algo surreal. Diria que parece uma realidade paralela! Num Brasil de notícias difíceis, desigualdade e injustiças, também existe um Brasil cheio de esperança, alegria e paixão.

Paradoxalmente, as pessoas que compõem as muitas minorias que são desprovidas de poder são as que sorriem com mais vontade, são as que cantam mais alto, são as que se emocionam com mais intensidade. Na verdade, este é o poder que elas têm! O poder de não se deixar abalar pelas mazelas da vida, resistir firmemente e experienciar a intensa felicidade que o Carnaval proporciona!

Talvez ainda existam pessoas que pensam que o Carnaval é apenas uma festa… Mas é muito mais do que isso! Carnaval é um poderoso instrumento de manifestação cultural, empoderamento do povo e resistência. É como se fosse um combustível de renovação da esperança, ao mesmo tempo que é um protesto pacífico e lindo. Nos ensaios da comunidade da Mangueira, tudo isso fica muito claro e a sensação de estar lá é intensa e inexplicável!

O samba-enredo “História Pra Ninar Gente Grande” chama o Brasil para conhecer o lado B de sua história, aquilo que ficou de fora dos livros, uma outra versão dos fatos. A letra cita personagens de diversas épocas, mostrando que, desde sempre, os verdadeiros heróis não estão na elite que detém dinheiro e poder. É um samba lindo e forte, carregado de significado e musicalidade. Já é um sucesso, está na boca do povo antes mesmo do desfile, foi gravado em algumas versões e já toca por todos os cantos da cidade! Confesso que estou orgulhosa e feliz de ter conhecido o samba há alguns meses e estar com ele na ponta língua, rs!

Você sabe como acontece a escolha do samba-enredo? Na Mangueira, há uma competição. O tema “História Pra Ninar Gente Grande” foi criado pelo carnavalesco da escola, Leandro Vieira. Então diversos compositores inscreveram suas letras, que foram avaliadas pela comissão julgadora ao longo de várias etapas. No total, foram 16 músicas. O samba composto por Danilo Firmino, Deivid Domênico, Mamá, Márcio Bola, Ronie Oliveira e Tomaz Miranda foi o vencedor na etapa final, no dia 13 de outubro. E a versão ganhadora foi gravada pela talentosa Cacá Nascimento (escute aqui), que, com apenas 11 anos, é uma das vozes da Mangueira!

Vamos à letra e seu significado:

Brasil, meu nego
Deixa eu te contar

O samba começa personificando o Brasil, chamando-o para ouvir algo importante.

A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra

Dá a entender que existe um outro lado da história e menciona a bravura do povo disposto a lutar.

Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou

Mais um chamado ao Brasil, avisando que a Mangueira vai falar sobre o que não está nos livros.

Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento

Corrige a expressão “descobrimento” por “invasão”, deixando claro que o Brasil já existia antes da chegada dos portugueses.

Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado

Avisa que, embora os brancos tenham ficado com a fama, muitos negros lutaram e morreram para que direitos fossem conquistados.

Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato

Complementando o verso anterior, diz que o desejo da Mangueira é o país que não é retratado, não é falado. Isso significa incluir e considerar heróis pessoas que fazem parte de minorias como mulheres, mulatos e tamoios (aliança entre tribos indígenas para combater ataques dos portugueses).

Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de Cariri

Dandara foi uma guerreira negra, líder do Quilombo dos Palmares e esposa de Zumbi. Foi presa e se suicidou para não voltar a ser escrava. Cariris são indígenas da região Nordeste, fizeram um movimento de resistência aos portugueses por 30 anos a partir do final do século XVI.

Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati

Mais uma correção da história contada pelos livros: o mérito da abolição da escravatura não é da Princesa Isabel e sim dos negros que lutaram por isso. Dragão do Mar foi um jangadeiro que liderou uma greve de transporte de escravos na região de Aracati, Ceará.

Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo

Referência à guerra pela independência do Brasil liderada por caboclos na Bahia, que expulsou portugueses de Salvador no dia 2 de julho de 1823. Já os anos de chumbo são o período de ditadura militar, que iniciou em 1964.

Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês

Marias: nome muito comum no Brasil, utilizado na letra para representar as muitas mulheres que fizeram e fazem história. Mahins: Luísa Mahin, ex-escrava que liderou a Revolta dos Malês, que aconteceu em Salvador em 1835. Marielles: Marielle Franco, vereadora negra que lutava pelos direitos humanos, assassinada em 2018 no Rio de Janeiro.

O nome de Marielle no samba-enredo é de uma representatividade enorme, já que é uma figura da nossa história recente e seu assassinato gerou uma revolta e comoção muito grande no Brasil e no mundo, mas principalmente no Rio. Ela era carioca e vivia aqui.

Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões

Também são heróis os trabalhadores do barracão da escola de samba, que se dedicam a fazer o carnaval acontecer.

Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa as multidões

Leci Brandão foi a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores da Mangueira, nos anos 70. Jamelão foi intérprete do samba-enredo da Mangueira por quase 60 anos, se tornando um dos símbolos da escola. A última frase afirma a força da Mangueira e suas cores verde e rosa. É a maior escola de samba e a mais conhecida, com poder de mobilizar e dar voz às multidões!

Estou muito ansiosa pelo desfile da Mangueira, não vejo a hora! Será a quinta escola a entrar na avenida na segunda-feira, 04/03. Além dos ensaios de rua, também já aconteceu o ensaio técnico na Sapucaí, num dia de muita chuva, quando a escola mostrou sua garra e o samba-enredo ecoava nas arquibancadas. Foi tão lindo e emocionante! Ah, importante dizer que algumas vagas da comunidade da Mangueira são abertas a quem não mora lá, como é meu caso. Basta se inscrever na data anunciada pela escola e se comprometer a frequentar os ensaios. Realmente o pessoal da Mangueira é generoso demais, só tenho a agradecer por poder viver isso!

Neste link você pode assistir alguns vídeos que fiz dos ensaios e estão nos Stories do Instagram.

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3 comentários

  1. parabéns pela análise e pelo amor pelo Rio.

  2. Gostei bastante do que você escreveu, porque dá um panorama geral sobre o que eles quiseram dizer com a letra. Grata.

  3. Muy buan explicación del enredo de Mangueira. Muchas gracias!! Saludos

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