O tecido maleável da saia a faz balançar pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, e as crianças ali embaixo, embaladas, quentinhas, completas, bem protegidinhas. Até que um furo as leva a descobrir um mundo lá fora e a curiosidade infantil vem imensa, reivindicando liberdade, autonomia. Até que ponto devemos proteger nossos filhos? Como cuidar de nossas crianças em tempos tão violentos? Norteado pelo mito de Aquiles, “Saia” traz à tona questões como superproteção materna e a dificuldade de criar os filhos para o mundo.

Era uma vez Tereza, viúva e mãe de duas meninas, uma mulher que sentia mais medo do que havia problemas no mundo. Num contexto de guerra, ela cria suas filhas literalmente debaixo da saia, até que um dia, um furo no tecido faz com que as meninas comecem a desconfiar da falta de acontecimentos em suas vidas.

Elenco todo feminino: Eliane Carmo interpreta a irmã caçula Neném, Elisa Pinheiro faz a Mãe e Vilma Melo dá vida à protagonista e filha primogênita, a encantadora Aquiles. A história chega ao palco com direção de Joana Lebreiro. A atriz Marcéli Torquato marca seu debut como dramaturga em “Saia”. Seu texto foi selecionado para ser encenado e também vai virar livro pela Editora Cobogó. Em 2018 ela fez parte da 4ª turma do Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI, celeiro de novos dramaturgos, coordenado pelo diretor e dramaturgo Diogo Liberano.

Perguntei pra Marcéli por que escolheu contextualizar essa história num cenário de guerra e ela me respondeu: “Porque vivemos numa cidade em guerra. Basta ler o jornal”. “Saia” é uma investigação sobre querer cuidar num mundo violento. Após ser mãe, ela foi tomada por dois medos: o mais presente, o de morrer (medo da filha ficar órfã) e logo, o medo de morar numa cidade violenta como o Rio de Janeiro.

O Mito de Aquiles foi outro grande mote pra ela. Na mitologia, sua mãe, Tétis, era imortal e Aquiles, mortal. Na angústia de querer imortalizar o filho ela o mergulha nas águas, pendurado pelo pé, e então seu corpo é imunizado, porém o calcanhar fica desprotegido. Uma flecha envenenada acerta justamente esta parte do corpo de Aquiles, matando-o. A lenda é uma metáfora da superproteção das mães com seus filhos, que como se pode ver, fogem a seu destino. “Queria investigar essa característica da maternidade: a tentativa de controlar os riscos, de imunizar as filhas e filhos a todo custo”, conta a autora.

Todos os dias somos bombardeados por informações, sejam elas jornalísticas, publicitárias, etc, e ao recebê-las como reagimos? Nos indignamos, nos omitimos, como nos posicionamos? Esta atmosfera às vezes se torna irrespirável, mas não podemos descartá-la: torná-la pensável é um modo de descontaminá-la. O que fazer com este medo? Quando instigada por Diogo durante a oficina de dramaturgia sobre qual diferença queria imprimir no mundo, o drama materno desenrolou para a questão política.

Quais os desafios de criar uma menina nesse cenário? Baseou-se no caso de Rodrigo, casado, pai de dois filhos, assassinado pela PM no ano passado na comunidade do Chapéu Mangueira, porque seu guarda-chuva foi confundido com um fuzil. No mesmo ano também, enquanto a dramaturgia tomava forma, as eleições eram marcadas pela violência tornando-se protagonista na política. “Talvez, ‘Saia’ fale de maternidade para falar sobre a criação de um indivíduo que vai em busca de seu mundo privado, deixando pra trás sua casa, sua terra de origem. Casa é o lugar de onde partimos e a primeira casa é o útero”, acrescenta Marcéli.

A trama tem qualidade de flor no asfalto, é cheia de metáforas e acompanha a rotina de uma mãe demasiado protetora com as filhas sob a saia num trajeto casa-trabalho-casa. Aquiles, a filha mais velha, é um poço de inteligência, coragem e curiosidade – características inerentes à infância, e tem um brilho a mais: ela duvida. Aquiles e Neném ameaçam essa estrutura, as duas personagens são a homenagem da autora à educação, ao pensamento livre e às mulheres. “Que Aquiles e Neném nos ensinem a desconfiar e que a desconfiança nos liberte!”, deseja.

Superproteção será um instinto materno? Segundo a professora nova-iorquina Marilyn French, que lecionou em Harvard, isso é ficção inventada. Ela escreve que as sociedades que existiram dos anos 200 mil AC até os 500 DC eram matricêntricas. O matricentrismo se caracteriza, como em todo mundo animal hoje, na relação mãe-cria. A mãe não cria o filho para tutelá-lo. Ela o ensina a pescar, caçar, lutar, para que seja então livre dela. Ela os prepara para o mundo.

Há um jargão que diz algo assim: “eu era uma ótima mãe até tornar-me uma”. É isso que acontece quando nos tornamos mães, pagamos a língua o tempo todo e muitas vezes nos vemos imersas num mundo de clichês. E o medo de perder seu maior amor é imensurável e muitas vezes, irracional.

Outra curiosidade sobre “Saia”: Marcéli Torquato me contou que uma cena de “Procurando Nemo” mexeu com seu texto. É engraçado, porque se trata de um filme para crianças, mas essa cena especialmente a marcou. Na história, a peixinha Dory ajuda Marlin, um pai superprotetor, desesperado porque seu filho Nemo foi levado por um mergulhador. E quando Dory acha, e depois perde Nemo, diz ao Marlin: “eu prometi que nada ia acontecer com ele, mas se nada acontecer, nada aconteceu”. Quer dizer, se nós mães não queremos que nada aconteça com nossos filhos, que vida é essa então? Como li n´algum poema: “os que ficaram no entanto estão livres”. Esconder debaixo da saia é fugir do mundo, canta Martinho da Vila.

Mães protetoras não libertam seus filhos. Será que ao invés de protetoras, podemos ser apenas cuidadosas? “Não se pode fugir de tudo. É preciso que a vida aconteça”, conclui Marcéli. Concordo!

Ao lado da diretora no time criativo estão Gabriela Estevão (diretora assistente); Ana Luzia de Simoni (iluminadora); Marieta Spada (diretora de arte) e Claudia Castelo Branco (diretora musical e trilha sonora original especialmente composta para o espetáculo). A equipe se completa com a diretora de movimento e preparadora corporal Tatiana Tiburcio, que partiu do jongo e da dança afro para a movimentação das atrizes em cena: “O jongo tem uma ligação poética com a trama, já que o girar das saias na dança leva para longe o que é negativo e traz para perto o axé que nos protege. Axé para nossas crianças!”

Sobre o Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI: nasceu da vontade de descobrir e desenvolver novos autores teatrais brasileiros e é aberto para quem gosta de escrita, com ou sem experiência em dramaturgia. Além de experimentações, os participantes escrevem suas dramaturgias sob orientação de Diogo Liberano, coordenador do Núcleo. Se você gosta de escrever e se interessou em fazer parte da turma de 2020, fique atento ao edital pelo site.

“Saia” está com temporada de 13/5 a 18/06/2019 no Teatro Firjan SESI Centro (Avenida Graça Aranha, 1, no Centro – próximo à estação de metrô Cinelândia – 21 2563-4163), com sessões segundas e terças às 19h. Ingressos custam R$20 (inteira) e R$10 (meia) e podem ser adquiridos na bilheteria ou online. Duração: 80 minutos. Mais info na página do Facebook, aqui.

Crédito das fotos: Guilherme Silva

*A experiência contada nesse post foi uma cortesia do espetáculo.

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