Num cenário maravilhoso, instalação de Ronaldo Fraga em composição à videoarte de Cao Guimarães, surge Nastácia Filíppovna com uma etiqueta aparente no vestido de festa. A mulher de beleza extasiante está à venda. Ela é a anfitriã do jantar e ao mesmo tempo peça de leilão que acontece justo ali, na sala de seu apartamento e no dia de seu aniversário. Será uma grande noite e você está convidado! Inspirada em personagem de Dostoiévski, a heroína ganha montagem inédita.

Nastácia, mulher insolente e de beleza enlouquecedora, é personagem retirada do romance “O Idiota” de Fiódor Dostoiévski (Moscou, 30 de outubro de 1821 – São Petersburgo, 28 de janeiro de 1881). A adaptação russa, idealizada por Flávia Pyramo, intérprete do papel, traz protagonismo feminino e – por que não? – engajamento na luta contra o feminicídio.

Publicado em 1869, o livro retrata a sociedade frequentadora dos salões de São Petersburgo, e como é comum no autor, a história é repleta de personagens psicologicamente bem construídos, com motivações conflitantes, escondendo reais intenções por trás das máscaras sociais.

Em cena, o recorte escolhido foi a festa de aniversário da protagonista, Nastácia Filíppovna, que naquela noite deve anunciar seu casamento com Gánia (atuação de Odilon Esteves). Órfã e sem lar na infância, ela acaba sendo criada pelo oligarca Totski (interpretado por Júlio Adrião), homem que a transformou em concubina desde a adolescência. Agora Totski resolve se casar, mas não com ela, oferecendo sua mão – e um dote – ao pretendente.

A montagem, que é inédita, contou com a consultoria de Paulo Bezerra, que já verteu diretamente do russo mais de quarenta obras de Dostoiévski, entre elas, “O Idiota”, que serviu de inspiração para a peça “Nastácia”. A direção é de Miwa Yanagizawa e dramaturgia, de Pedro Brício.

A história começa com um homem fascinado por seu retrato – e aqui podemos pensar na objetificação da mulher – até que surge Nastácia, essa obra de arte em carne e osso, dona de si, insolente, divertida e debochada, uma potência de mulher vivida com primor pela atriz mineira Flávia Pyramo. Diante da mesa farta,  lareira sendo acesa, iluminação a velas em castiçais de prata, a festa é regada a cálices de vodca e muitos chistes. E o que acontece ali é a libertação de uma mulher finalmente solta de seu algoz. Uma mulher querendo ser livre e já sendo livre.

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome”, escreveu Clarice Lispector, e aqui eu cito uma autora porque “Nastácia” fala de protagonismo feminino, opressão à mulher, força, resistência e destino.

Por acaso esses dias eu estava lendo sobre amor fati, tão falado pela escritora e talvez termo mais conhecido na filosofia de Nietzsche. A expressão que, traduzida do latim, significa “amor ao fado”, ou seja, aceitação integral da vida e do destino humano mesmo em seus aspectos mais cruéis e dolorosos. Isso me fascina, porque exatamente assim me parece atuar Nastácia, cuja infância foi cruel. Após sobreviver a um incêndio, tornar-se órfã e ser explorada sexualmente, ela agora vigora dona de si.

No dia do seu aniversário, ela recebe em casa convidados (nós, a plateia) e, muito à vontade em seu papel de conduzir a noite, guia graciosa os rumos da noite e está no comando de suas escolhas. Dirá sim ou não ao casamento? A meu ver, Nastácia é um exemplo vivo de adepta desse tal amor fati. Ela consegue amar um destino que muitas vezes lhe trouxe vivências amargas e sofrimento. Naquela festa, ela se mostra uma exímia anfitriã e uma pessoa autêntica que reconhece, encara e celebra a existência em toda sua plenitude, mesmo com tudo que já viveu de ruim. Dizendo não, Nastácia diz sim para si mesma, para suas escolhas. Nastácia tem o espírito livre, apesar de um destino fatal, o qual não lhe desejaríamos. Nastácia não evita a tragédia e o faz com antídoto carnavalesco nessa adaptação russa que também podia acontecer na cidade do Rio de Janeiro de hoje em dia.

“Não quero a beleza, quero a identidade” é outra frase de Clarice que ilustra muito bem a atitude de Nastácia, que naquela noite, se livra das formas convencionais de pensamento, é desprendida e engajada. Além de fazer troça com a sociedade, ela desdenha o dinheiro, algo tão almejado pelos comensais que a querem comprar. Quem dá mais?

Para o dramaturgo Pedro Brício, repulsa e atração são forças conflitantes nos três papéis: Nastácia, Gánia e Totski. “A potência do drama dos personagens é o que nos arrebata, por ser tão vertiginoso, por se transformar de uma hora para outra diante dos nossos olhos”.

Escrito no século XIX, “O Idiota” não se desatualizou no que diz respeito ao abuso contra a mulher,  infelizmente. Segundo o Datafolha, 22 milhões (37,1%) de brasileiras já passaram por algum tipo de assédio. Eu sim, e mais de uma vez, e você? Para a diretora do espetáculo, Miwa Yanagizawa, a arte é um espaço em que o artista pode, como mediador, reumanizar estatísticas devastadoras como essas. “São séculos de opressão e crueldade contra as mulheres e, muitas vezes, acho que não nos vemos responsáveis pela manutenção de tais tragédias humanas. Tomamos distância como se elas pertencessem a outro universo, como coisas que acontecem somente fora de nossas casas”.

O tradutor Paulo Bezzera destaca que a história de Nastácia, como tudo em Dostoiévski, é de uma espantosa atualidade. “Primeiro ela é vítima de um grão-senhor e gentleman pedófilo, que se vale do repentino estado de miséria dela e do muito dinheiro que possui e a transforma em concubina aos 12 anos de idade, sem sofrer qualquer censura da sociedade: é o poder do dinheiro falando mais alto. Depois, já adulta, é vítima de um amante paranoico, que, por não conseguir conquistar seu amor, simplesmente a mata. Portanto, duas formas de crime contra a mulher: o crime alicerçado no dinheiro e o crime derivado da impossibilidade de conquistar o coração e a mente da mulher. Ou seja, o crime motivado pelo sentimento de posse, pela tentativa de coisificação da mulher”.

Precisamos falar de feminicídio: no Brasil, uma vítima é morta, apenas por ser mulher, a cada oito horas. O feminicídio é o homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher (misoginia e menosprezo pela condição feminina ou discriminação de gênero, fatores que também podem envolver violência sexual) ou em decorrência de violência doméstica. A Lei Maria da Penha, que criminalizou a violência contra a mulher, completa 13 anos em 2019.

“Apesar de enxergar o Príncipe Míchkin como uma salvação, Nastácia vai em direção à faca do homem que a compra. É como se ela pressentisse o próprio destino de morte, pois sua alma já havia sido assassinada na infância. Há uma atualidade estranha nessa história. E é importante falar sobre isso”, ressalta a atriz.Está aí, talvez, uma forma de expandir a voz da personagem, e para além do retrato” – completa Flávia.

Além de um belo exemplar da literatura russa, um recado se faz claro: Não vamos sucumbir à opressão. Não percam Nastácia, esse primor de trabalho e bonito de olhar!

Em formato de semi-arena, o cenário fica aberto a visitação. A instalação artística  é assinada por Ronaldo Fraga que é, também, o responsável pelo figurino.  A instalação conta ainda com a videoarte do cineasta Cao Guimarães na sua primeira incursão no teatro. Ronaldo Fraga e Cao Guimarães, dupla bem conhecida nas Gerais! A instalação está aberta ao público de 9h às 17h,  no Teatro III do CCBB, de quarta-feira a domingo. Entrada gratuita e classificação livre.

“Nastácia” está em cartaz de 23/10 a 22/12/2019, de quarta a domingo, sempre às 19h30, no CCBB Rio (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro – 21 38082020). Ingressos custam R$30 inteira e R$15 meia, podem ser adquiridos na bilheteria do teatro (abre de quarta a segunda, de 9h às 21h) ou online. Duração: 1h40. Mais informações no Facebook e no Instagram de “Nastácia”.

Crédito das fotos: Guto Muniz e Janderson Pires

NOTA: O Vida Carioca repudia o fato de espetáculos serem retirados de cartaz sem uma justificativa clara, como aconteceu ultimamente no Rio de Janeiro.

*A experiência contada nesse post foi uma cortesia do espetáculo.

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