Duas irmãs assassinam o pai abusivo enterrando-o no quintal de casa. Como num quebra-cabeça, os fatos vão se encaixando ao longo da peça… As duas atrizes interpretam pastor, moleques, policial, uma égua e elas mesmas – é de deixar a plateia sem ar. Porém, só a fala masculina ecoa naquele palco. A mulher apenas sofre a violência. Até a égua é cavalo. “Mansa” é uma das melhores peças que já assisti! Vale pelo conjunto da obra: texto potente, talento das atrizes, direção redonda, clima (luz, música, cenário).

“Mansa” é um urro de raiva incontida. Grito de duas adolescentes, que passaram grande parte da vida em cárcere privado, senão em casa, agora na prisão – que é menos pior do que sofrendo violência e justo pelo pai. Estão perdidas para sempre. E a mãe, e a mãe? Outra vítima?

Veja uma passagem da dramaturgia:

“Mas as duas era xucra. Dava coice e trabalho, cada uma do seu jeito. Parece que a natureza delas era essa. A mãe ficava parada, achava normal, natural, porque era outra da mesma espécie. E eu, o único homem, era o enviado de Deus pra impedir a natureza selvagem de agir, dentro da própria casa.”

Até que um dia as meninas executam seu projeto planejado: matam o homem e enterram seu corpo nos fundos da casa sendo ajudadas por um terceiro elemento… mais não digo, “arre égua”! A história é forte, pesada, mas tem um momento de graça, para tomar fôlego. E a beleza da arte enfeita tudo!

Amanda Mirásci e Nina Frosi dão vida às irmãs. As atrizes dão um show em cena, muito bem conduzidas pelas mãos de Diogo Liberano, vão crescendo e ficando irresistíveis. Há um trabalho de corpo especial e delicado ali que salta à vista. A cereja do bolo é o texto original de André Felipe. Me deliciei ao ouvir, um arrebate! Dramaturgia bela e brutal. Espetáculo memorável, não desgruda da cabeça, toda hora me vem uma cena.

Como detetives ou arqueólogos, as duas atrizes em cena vão progressivamente desenterrando uma história silenciada, deixada na terra e perdida no tempo. Elas interpretam diferentes personagens numa encenação fragmentada e o espectador vai entendendo o enredo. Preste atenção na beleza dos monólogos do pai conversando com a égua, por exemplo. Tem que ficar atento para não perder nada durante os apenas 60 minutos de espetáculo.

A história é então construída por meio de fatos que se estendem por vários tempos, desde a infância das duas irmãs, passando pela adolescência, até o ato do crime e o futuro. E as meninas, irrecuperáveis, para sempre perdidas, estragadas pela vida e sem esperanças para viver.

Mais um trecho porque vale a pena perceber a complexidade do texto:

“Quando elas chegaram na prisão pareciam duas meninas, dois passarinhos caídos do ninho, dois bichinhos do mato enjaulados. Ninguém conseguia acreditar que as duas tinham cometido um crime tão, tão sanguinário. Aquelas meninas. Mas aos poucos a gente foi entendendo. Elas têm cara de santa, mas são como bicho mesmo. E tão decididas a odiar todos os homens da face da Terra.”

Uma fala masculina que diminui e culpabiliza a mulher. Em “Mansa” até o sexo do cavalo (que é fêmea, ou seja, uma égua) é ignorado. “Enquanto uma retroescavadeira come e regurgita terra”, o espetáculo investiga a origem da violência conta a mulher e os crimes contra ela sem a devida punição. As personagens masculinas observam o drama das irmãs por diferentes ângulos, colocando em questão o processo de “amansamento” feminino. Mais do que apresentar um crime, a peça chama atenção para os inúmeros crimes praticados contra as mulheres que não recebem um olhar cuidadoso, naturalizando a violência.

“Mansa” estreou no festival Cena Brasil Internacional, em 2018, e fez temporadas no Rio e em São Paulo, voltando agora ao Rio em curtíssima temporada, que espero, atinja muita gente. “Mansa” é uma pérola, ressalta a beleza da arte e sensibiliza quando contribui para o entendimento e o fazer acontecer. Nos lembra da necessidade de ouvir a vítima e não o violentador.

A encenação de Diogo Liberano buscou construir, junto à direção de movimento de Natássia Vello, uma dramaturgia corporal que apresenta diversos momentos da vida dessas irmãs. Você vai reparar que há uma contradição entre os fatos narrados pelas personagens masculinas e a realidade vivida e sentida pelas mulheres que foram emudecidas.

A trilha sonora original de Rodrigo Marçal, o cenário e os figurinos de André Vechi e a iluminação de Livs Ataíde visam, de modos variados, encontrar e completar uma história que foi esquecida e silenciada.

A dramaturgia de André Felipe, premiado dramaturgo, que também é ator, diretor teatral e coordena oficinas de escrita criativa, foi construída a partir de referências sugeridas pelo diretor e pelas atrizes. O nome da peça foi inspirado no poema “Uma mulher limpa”, do livro “Um Útero é do Tamanho de Um Punho”, de Angélica Freitas. Aqui deixo um trechinho:

“porque uma mulher braba / não é uma mulher boa / há milhões, milhões de anos / pôs-se sobre duas patas / não ladra mais, é mansa”

O diretor artístico Diogo Liberano é também doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade, professor da CAL, dramaturgo e coordenador do Núcleo de Dramaturgia Firjan SESI. Não perco mais nenhuma peça com assinatura dele.

“Mansa” tem curta temporada, de 06/8 a 25 de setembro de 2019, no Teatro Poerinha (Rua São João Batista, 104, Botafogo – 21 2537-8053). Terças e quartas às 21h, ingressos custam R$40 (inteira) e R$20 (meia) e podem ser adquiridos na bilheteria do teatro ou online. Classificação etária: 16 anos. Mais informações no site, Facebook ou Instagram de “Mansa”.

Crédito das fotos: Thaís Barros

*A experiência contada nesse post foi uma cortesia do espetáculo.

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