Sexta-feira fria chuvosa no Rio. Carioca não sai de casa quando chove, mas a fila do teatro estava tão comprida que fiquei impressionada, não esperava sessão cheia num dia daqueles. Acomodo-me na poltrona, feliz de estar no teatro, as cortinas se abrem e o cenário vibrante de “A Ponte” convida para um mergulho na relação conflituosa entre três irmãs. Laços de sangue complicados… Você pode até achar um tema trivial, mas a dramaturgia estimulante de Maclvor tem sua bossa: mestre em criar jogos dramáticos, ele salpica humor na naturalidade da vida.

“A Ponte” só aumenta. Já passou por Belo Horizonte, São Paulo e Brasília. Agora chega ao CCBB Rio! Bel Kowarick, Debora Lamm e Maria Flor, dirigidas por Adriano Guimarães, encenam pela primeira vez no Brasil o texto do premiado autor canadense Daniel Maclvor.

O enredo baseado no romance “Marion Bridge”, publicado em 1999, aborda a intimidade familiar de três irmãs, separadas pela vida, que se reencontram em sua cidade natal para enfrentar a morte iminente da mãe. São interpretadas com muita competência pelo experiente trio de atrizes: Louise, a caçula, desconectada da sociedade e viciada em séries de TV, vive em outro mundo; Agnes, a irmã do meio, alcoólatra, partiu para ser atriz, mas não conseguiu realizar-se na profissão; e Teresa, a mais velha, uma freira devotada que vive num retiro religioso. O pai mora com outra mulher e não está interessado em falar do passado.

Emoldurando esse retrato de família disfuncional, temos uma cozinha de objetos em cor vermelha. E destacada na parede do cômodo vemos uma luminosa cruz, que a meu ver, simboliza o suplício daquelas três mulheres, tão diferentes entre si, sendo obrigadas a conviverem. A cruz é o símbolo do cristianismo, e aí cada um que interprete a sua maneira… Durante a peça, cada uma tem um momento solo, trazendo à superfície seu conflito particular numa espécie de confessionário.

A ideia de adaptar “A Ponte” veio de Maria Flor, fascinada pela dramaturgia de Maclvor. O canadense também roteirizou a adaptação cinematográfica, e o espetáculo foi inspirado no roteiro do filme estreado em 2002. É sublime a competência do autor para criar personagens femininas e escrever diálogos tão fluidos, com inteligência, humor e, sobretudo, compaixão. Maria Flor foi muito intuitiva ao garimpar este texto e apresentá-lo a nós brasileiros!

Toda a narrativa acontece na cozinha, “que é o lugar banal, do cotidiano, que funciona como um microcosmo para reunir, ou quem sabe reconstruir pontes, entre pessoas tão diferentes”, afirma o diretor conhecido internacionalmente pela pesquisa artística desenvolvida, desde 1998, sobre a obra do escritor irlandês Samuel Beckett. No palco também algo inovador: uma TV transmite rubricas do roteiro. Mostra por exemplo trechos da série que Louise assiste, dando um tom de humor à peça e aliviando um pouco o peso do conflito que a plateia testemunha. Além disso, essa tela acesa no palco é uma forma de juntar teatro e cinema. Afinal, Daniel Maclvor, ator, dramaturgo, diretor de teatro e cinema, conhecido no Brasil pelas encenações de “In or It”, “À Primeira Vista” e “Cine Monstro”, escreveu primeiro a peça, para depois transformá-la em roteiro. E por que não usar também a simbologia da “ponte” para unir dois meios intersemióticos: o palco e a televisão?

Cenário e entorno me remeteram ao cineasta Ingmar Bergman e sua obra “Gritos e Sussurros”, cujo enredo também gira ao redor de quatro mulheres e toca nos mistérios mais profundos da alma humana. Enfim, se você gosta do tema, pode aprofundar a volta do teatro com a apreciação desse filme.

“A Ponte” trata da aceitação das diferenças e da reconstrução de uma família. Neste reencontro, as mulheres não só confrontam a morte da mãe, mas o que se tornaram, o que fizeram de suas vidas. Refletem sobre suas escolhas, sobre a vida que levaram até então, cheias de solidão e vazio. A aproximação acaba remexendo nos antigos segredos da família e, na cozinha da casa onde foram criadas, as três vão acabar revendo suas crenças e diferenças, em busca da possível reconstrução de uma célula familiar há muito tempo fragmentada. Como uma ponte que une umas às outras elas tentam achar um elo que as conecte, cada qual com suas diferenças gritantes.

O trio não podia ser mais diferente! Maria Flor interpreta muito bem sua personagem, Louise é muito dependente da mãe, é introspectiva, lúcida, direta e literal. Bel Kowarick também atua com graça, se libertando do estereótipo de uma freira rígida, dando lugar a uma mulher humana. Ela é Tereza, mais serena, apaziguadora, espécie de alicerce da família. Nela podemos refletir sobre as escolhas que fizemos, pois as dela, estão em crise. Tereza questiona a fé e os caminhos da humanidade. Já Débora Lamm se entrega à Agnes, uma mulher intempestiva, intensa, amargada pela vida, de humor oscilante e que traz ao diálogo uma ferida familiar. Segundo ela: “O ambiente familiar reúne nossas primeiras referências e também nossos primeiros conflitos. É o primeiro espelho para o mundo.” Enfim, a família, a casa é nosso primeiro ambiente de formação, onde nos tornamos gente.

Maria Flor acrescenta, “é um texto que fala sobre afeto e relações humanas profundas, mas o que me chamou mais atenção foram os diálogos e as personagens. É uma peça completamente sobre mulheres, que sobrevivem apesar de todas as dificuldades e que se ajudam, se fazem crescer e amadurecer”. O que se vê é uma relação viva entre irmãs, atravessada por conflitos e amor.

Para mim o maior recado foi: Vamos dialogar, vamos ouvir, vamos respeitar as diferenças. É sempre bom lembrar. “A Ponte” abre caminhos e  o coração.

“A Ponte” está no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro – Teatro II (Rua Primeiro de Março 66, Centro, 21 3808-2020) de 20 de junho a 12 de agosto de 2019, de quinta a segunda às 19h30. Ingressos na bilheteria do CCBB (abre de quarta a segunda de 9h às 21h) ou online. R$30 inteira e R$15 meia. Mais informações na página do Facebook da peça.

Crédito das fotos: Ismael Monticelli

*A experiência contada nesse post foi uma cortesia do espetáculo.

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