Portela | samba-enredo 2020

A G.R.E.S. Portela é a maior vencedora do carnaval carioca, com 22 títulos. Fundada em 1923, é a escola de Paulinho da Viola, Heitor dos Prazeres, Monarco, Zeca Pagodinho, Zé Keti, Candeia, João Nogueira, Waldir 59, Alcides Malandro Histórico, Noca da Portela, Natal, Paulo da Portela, Casquinha, Argemiro, Jair do Cavaquinho, Tia Surica e muitos outros ícones do samba brasileiro. 

Atualmente, a escola se encontra em uma ótima fase, depois de passar anos de aperto. Foi campeã em 2017 (algo que não acontecia desde 1984) e a atual diretoria vai ficar marcada por fazer com que a escola retome um papel de vanguarda como instituição de cultura. 

Depois de um desfile um tanto quanto decepcionante em 2019 (a expectativa com o enredo sobre Clara Nunes era muito maior do que o desfile que a escola fez), a Portela contratou o carnavalesco Renato Lage e aposta num enredo sobre as comunidades indígenas que habitavam o Rio de Janeiro antes da chegada dos portugueses. 

VERSO A VERSO

Esse verso a verso foi escrito por Rafael Freitas da Silva em sua conta no Facebook (publicado em seu perfil no Facebook e reproduzido aqui com sua autorização). Rafael é autor do livro “O Rio Antes do Rio”, que inspirou o enredo da Portela.

Clamei aos céus
A chama da maldade apagou

As primeiras frases do samba remetem ao mito da criação do mundo tupinambá por Monã (Monan) – palavra que remete ao termo tupi que quer dizer o “antigo” (o espírito criador). Essa forma escrita foi deixada pelo franciscano francês André Thevet que esteve na Guanabara com Villegagnon e é principal fonte sobre a religião e mitos tupinambás. Diz ele a partir da narração dos próprios tupinambás que, no gênesis tupi, Monã criou todo o mundo, mas os homens não reconheceram o gesto e foram passíveis de culpa por seu mau comportamento, ao caírem em desvario e desprezo por seu criador. Ao sentir a ingratidão dos homens, Monã resolveu então aplicar-lhes uma punição e ordenou que um grande “tatá” (fogo) descesse do céu, queimasse e consumisse tudo o que havia na face da terra. Assim o grande fogo fez com que a terra se “enrugasse, transformando-a em vales e montanhas”.

E num dilúvio a terra ele banhou
Lavando as mazelas com perdão
Fim da escuridão
Já não existe a ira de Monã
No ventre há vida, novo amanhã
Irim Magé já pode ser feliz

Em meio ao “apocalipse” tupinambá, Monã salvou apenas um homem, chamado de “Irin-Magé” – nome que Alberto Mussa tão bem traduziu por Pagé do Mel(zinho) – que era considerado pelos tupinambás como o mais antigo ancestral. Compadecido pelas lamúrias de Irin-Magé ao ver o mundo sendo destruído, Monã resolveu remediar o mal que havia feito e fez com que chovesse com tanta abundância até que fogo se apagasse. Foi tanta água que os oceanos se formaram e ficaram salgados em virtude do sal presente nas cinzas do grande incêndio. É a lenda do dilúvio que cria o mundo que tão bem representa o que ocorre anualmente no Rio de Janeiro (e no Brasil). Quando Monã viu que a terra havia recuperado sua antiga formosura e que o mar a embelezava e rodeava, convocou Irin-Magé e deu a ele uma esposa, para que pudesse repovoar a terra com homens melhores.

Transforma a dor
Na alegria de poder mudar o mundo
Mairamuana tem a chave do futuro
Pra nossa tribo lutar e cantar

Aqui entra o mito de Maíramuana (ou Maíra-Monã) – o Karaíba (profeta) mais antigo – que seria o filho mais notável de Irin-Magé – dotado de poderes “transformadores” pois ele seria um “familiar” de Monã. É esse karaíba que “deu ordem, de acordo com seu bel-prazer, a todas as coisas, afeiçoando-as de vários modos e, em seguida, convertendo-as em diversas figuras e formas de animais, de pássaros e de peixes, de conformidade com as regiões; até, mudando o homem em animal para puni-lo, como bem lhe parecia”. É este profeta “transformador” como poeticamente está na letra da música que “transforma a dor” e quem instaura as práticas sagradas que os tupinambás observavam à chegada dos primeiros europeus. Com Maíramuana eles teriam aprendido a tonsura dos cabelos, a depilação total, as pinturas corporais, as regras de alimentação, a organização social das tribos e as metamorfoses por meio das quais explicavam as características dos animais e das coisas. Era o “espírito” de Maíramuana que os pagés diziam receber durante as cerimônias religiosas dos tupinambás.

Auê, auê, a voz da mata, okê, okê arô
Se Guanabara é resistência
O índio é arco, é flecha, é essência

Aqui se faz menção a voz “não ouvida” dos tupinambás que resistiram durante quase 40 anos a “invasão” e colonização portuguesa no Atlântico Sul e que por fim acabaram sendo massacrados e escravizados. Foram os tupinambás da Guanabara o povo originário que mais resistiu aos “perós” e que organizaram a união de resistência de diversas tribos antes inimigas sob o nome de “Tamoios” (os avós da terra) e que fez com que a fundação da cidade do Rio de Janeiro tenha ocorrido depois de longos anos de batalhas e grandes perdas para os portugueses e índios aliados.

Ao proteger Karioka
Reúno a maloca na beira da rede
Cauim pra festejar, purificar
Borduna, tacape e ajaré
Índio pede paz mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem bispo, nem se curva a capitão

“Ao proteger Karioca”: a letra agora fala das grandes aldeias tupinambás que povoavam a Guanabara antes das chegada dos europeus e que é o grande tema do livro O Rio antes do Rio: a reconstituição das aldeias ancestrais tupinambás do Rio de Janeiro. A aldeia “Karioca”, como demonstram tanto fontes franceses como portuguesas, era uma das principais aldeias de defesa dos tupinambás. Ao contrário do que se ensina nas escolas, esse nome não faz referência a casa de pedra erguida por Martim Afonso de Sousa em 1531 na foz do rio que tem hoje o mesmo nome da aldeia. Não é “a casa do homem branco” como diz a historiografia oficial; e sim a “casa do (cacique) carijó” – ou se preferirem “a casa do índio”. Antes das expedições guerreiras ou reuniões de defesa da aldeia, o cauim, a bebida alcoólica dos tupis, feita a partir do cozimento e da mastigação (das virgens) principalmente do milho, era presença constante para animar os homens. O cauim era uma bebida religiosa e sagrada. As tribos eram guerreiras, os homens eram criados para serem fortes, destros e valentes, e odiarem os seus inimigos ancestrais. Mesmo assim, os “terríveis” tupinambás foram capazes de negociar a paz sem fazer qualquer mal aos jesuítas Anchieta e Manoel da Nóbrega, que ficaram meses hospedados na aldeia de Ubatuba por volta do ano de 1563. Na união dos tamoios, esses mesmos tupis foram capazes de esquecer suas inimizades e rivalidades ancestrais, para se defenderem unidos “sem partido ou facção”. Eles não se renderam nem aos “bispos” (padres e jesuítas) e nem aos capitães (portugueses – cargo exercido por exemplo por Estácio de Sá), que tão inteligentemente a letra faz menção. Fora disso, entenda a bordoada quem se doer!

Quando a vida nos ensina
Não devemos mais errar
Com a ira de Monã
Aprendi a respeitar a natureza, o bem viver
Pro imenso azul do céu
Nunca mais escurecer

Repetição dos ensinamentos de Monã para que o apocalipse (pelo fogo e dilúvio) a partir do desprezo dos homens não retorne e por isso os tupinambás seguiam a risca as tradições orais e ensinamentos ancestrais de seus mitos e histórias que formavam sua cultura e entendimento do mundo.

Índio é tupinambá
Índio tem alma guerreira
Hoje meu Guajupiá é Madureira

Guajupiá, a terra sem males, o nome oficial do enredo, é um dos temas do O Rio antes do Rio. O “Guajupiá” era um ideal religioso equivalente ao que chamamos hoje de “paraíso”, onde os antepassados tupis mortos descansavam em abundância eterna: uma “terra sem males” tão estudada pela antropologia. Encontrar o “Guajupiá” era algo esperado após morte mas também no decorrer da vida de um tupi. Um dos fatores que levavam as aldeias e tribos a migrações constantes em busca de lugares melhores para caça, pesca e terras. Por isso encontrar “o paraíso na terra” era um imperativo social e religioso para os tupinambás tanto na morte quanto na luta pela vida presente. A ideia que trago no livro é que os tupis ao migrarem desde o interior da Amazônia pelas serras, planaltos e rios, por todo o litoral brasileiro de norte a sul, finalmente encontram esse “Guajupiá” tão esperado na Guanabara carioca. Águas calmas, rios cristalinos, terras férteis, florestas e montanhas ao redor, com grande fartura e abundância de tudo o que precisavam, e onde foram capazes de criar grandes e articuladas aldeias que resistiram por mais de 30 anos a dominação colonialista portuguesa, sem se render. Portanto o “Guajupiá” cantado no enredo e no samba é na verdade a Guanabara, é Madureira.

Voa águia na floresta
Salve o Samba, salve ela
Índio é dono desse chão
Índio é filho da Portela

O último trecho é uma dos mais bonitos pois a “águia na floresta”, tanto é o símbolo da escola, como também uma menção a um dos maiores predadores do Rio quinhentista: a Harpia da Mata Atlântica. Uma águia ainda maior do que a “americana”, que tem representado a escola nos últimos anos. A Harpia brasileira emprestava seu nome a uma das aldeias tupinambás mais importantes e que era chamada por eles de “Guiráguaçu”. A aldeia “da águia” era uma das principais dos tupinambás e sua presença foi anotada por franceses primeiro na região do atual centro da cidade e depois, mais tarde, pelos portugueses, na região onde hoje coincidentemente se conformam os bairros de Madureira, Osvaldo Cruz e Vaz Lobo. Ou seja, a Portela é a aldeia de Guiráguaçu reencarnada na alma e na cultura de nosso povo. “Índio é filho da Portela”. O que nos remete ao grande suspense do desfile portelense: como virá a Águia da Portela esse ano?