Estação Primeira de Mangueira | samba-enredo 2020

A G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira, fundada em 1928, é a mais conhecida das escolas de samba. Ao longo de sua história, contou com a participação de grandes personalidades da cultura brasileira, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Beth Carvalho, Alcione, Carlos Cachaça, Chico Buarque, Nelson Sargento, Milton Gonçalves, Tantinho, Jamelão, Xangô da Mangueira, Delegado, Dona Neuma e Dona Zica. Já venceu o carnaval 20 vezes, sendo a atual campeã. 

É a única escola a desfilar na Sapucaí que tem uma batida única na sua bateria: não tem o surdo de segunda (ou surdo de resposta). 

O desfile de 2019 da escola foi arrebatador, histórico, marcante e o desfile de 2020 está sendo bastante aguardado. A escola repete para esse ano a fórmula que deu certo no ano passado, com o mesmo carnavalesco (Leandro Vieira) e com Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo como compositores do samba de enredo. 

O enredo “A Verdade Vos Fará Livre” vai trazer um debate sobre a imagem de Jesus Cristo, provocando também reflexões sobre o atual momento político brasileiro. 

VERSO A VERSO

Eu sou da Estação Primeira de Nazaré

Na antiguidade, era comum se referir a alguém como sendo de um lugar. A bíblia, então, se refere a Jesus como sendo Jesus de Nazaré. Nesse verso, há uma adaptação do nome da escola (Estação Primeira de Mangueira) com a forma como a bíblia se refere muitas vezes a Jesus. Na época do nascimento de Jesus, Nazaré era também um lugar periférico em termos econômico-sociais, tal qual o Morro da Mangueira atualmente. 

Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no Buraco Quente
Meu nome é Jesus da Gente

Este trecho mostra a forma como Jesus será retratado pela Mangueira. No desfile, ele não será aquela personagem branco, homem, loiro, etc. Para a verde-e-rosa, Jesus é também negro, mulher, índio, é também um menino brincalhão do Buraco Quente (lugar do Morro da Mangueira importante para o samba). Ele é um Jesus dos nossos

Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro, desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil

A trajetória de Jesus segue sendo contada; aqui, José (que deve ser representado no desfile por Nelson Sargento) é desempregado, como tantos brasileiros e Maria (que deve ser representada no desfile por Alcione) é uma mãe que sofre com a situação do país, com a dor de seus filhos. Para a Mangueira, Jesus já nasceu lutando para sobreviver, de punho cerrado.

Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão

Jesus está naquele que trabalha e mora no morro, na luta contra a opressão e também numa das imagens mais belas do carnaval: o olhar apaixonado da porta-bandeira para o pavilhão da escola. 

Eu tô que tô dependurado
Em cordéis e corcovados
Mas será que todo povo entendeu o meu recado?
Porque, de novo, cravejaram o meu corpo
Os profetas da intolerância

Nesse trecho há uma tentativa de fazer com que os seguidores de Jesus reflitam se estão mesmo seguindo a sua palavra. Os religiosos que atualmente pregam o ódio são chamados de profetas da intolerância

Sem saber que a esperança
Brilha mais na escuridão

Mais uma vez, assim como em 2019, o samba da Mangueira não deixa de trazer uma mensagem positiva, mesmo ao descrever um cenário de desigualdade e injustiça. Aqui há um recado: a esperança por dias melhores é ainda mais forte quando estamos nos piores momentos da nossa história. 

Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão

Aqui há um recado para a comunidade da Mangueira e demais morros/favelas da cidade: não é possível termos futuro com a concentração de riqueza atual, muito menos com o aumento do armamento. Messias é aquela pessoa ansiosamente esperada que virá nos salvar de uma situação ruim. Esse trecho também pode ser interpretado como uma referência ao discurso do presidente Jair Bolsonaro (cujo sobrenome do meio é Messias) e suas falas a favor do armamento da população. 

Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão

Se não há futuro com messias e com concentração de riqueza, o que podemos fazer? O samba responde: a auto-organização dos mais pobres, o poder popular.

Do céu deu pra ouvir
O desabafo sincopado da cidade

Quarei tambor, da cruz fiz esplendor
E ressurgi pro cordão da liberdade

De forma muito poética, o samba neste trecho mostra Jesus escutando o samba (o “desabafo sincopado da cidade” é uma das mais belas definições do que é o samba) e falando do significado do carnaval nestes tempos bicudos que vivemos: é a transformação das durezas do dia-a-dia (a cruz) em felicidade e alegria (o esplendor). Vale lembrar também que esplendor é a parte da fantasia que o componente leva nas costas. 

Mangueira
Samba, teu samba é uma reza
Pela força que ele tem
Mangueira
Vão te inventar mil pecados
Mas eu estou do seu lado
E do lado do samba também

O samba termina apostando na força do samba e da Mangueira, além de prever que o samba e o enredo da escola serão atacados com mentiras e falsidades, o que de fato aconteceu. É como se fosse um recado de Jesus para os mangueirenses.