Fundada em 1961, a G.R.E.S. São Clemente é uma escola tradicional da Zona Sul, especialmente do bairro de Botafogo e do Morro Santa Marta. Teve seu auge nos anos 1980, quando chamou a atenção com enredos críticos e politizados, alternando presença entre o Grupo Especial e o Grupo de Acesso. Atualmente está na sua maior sequência no Grupo Especial (desde 2011).
Depois de um desfile em 2019 que agradou bastante o público presente na Sapucaí, neste ano seu enredo fala como a mentira é parte fundamental da história do Brasil. O fio condutor para a história é o Conto do Vigário. Um dos compositores do samba-enredo é o humorista Marcelo Adnet, que, junto com seus parceiros, ganhou uma concorrida disputa na escola.
O carnavalesco é Jorge Silveira, um dos expoentes da nova geração. Assim como Leandro Vieira (Mangueira), a dupla Gabriel Haddad e Leonardo Bora (Grande Rio) e Jack Vasconcelos (Mocidade Independente), Jorge tem um discurso politizado e o entendimento de que arte é também um instrumento para a disputa de ideias na sociedade.
VERSO A VERSO
O sino toca na capela e anuncia
Nossa senhora começou a confusão!
Quem vai ficar com a imagem de Maria?
O burro vai tomar a decisão
O início do samba faz referência à disputa, na cidade de Vila Rica (a atual Ouro Preto/MG), entre as paróquias do Pilar e da Conceição sobre quem iria ficar com a imagem de Nossa Senhora. O método para resolver a querela foi: amarrar a imagem num burro e esperar em qual paróquia ele iria levar.
Mas o jogo estava armado
Era o Conto do Vigário
Mas a disputa não foi tão limpa como parecia. Isso porque o burro já pertencia ao vigário e então seguiu o caminho de casa.
Nessa terra fértil de enredo
Se aprende desde cedo
Todo papo que se planta, dá
A história da disputa da santa é usada como base para a ideia de que, desde a chegada dos portugueses ao Brasil, a mentira é a forma prioritária de se dar bem por aqui.
Dom João deu uma volta em Napoleão
Fez da colônia dos malandros capital
Trambique – patrimônio nacional
Pressionado pela Inglaterra e pela França napoleônica, D. João, rei de Portugal, tomou uma decisão ousada: trouxe todo o reino para o Brasil e fez da colônia a capital. Algo inédito na história. Dessa forma, fugiu de aderir ao bloqueio que a França queria fazer em toda a Europa continental contra a Inglaterra.
Tem laranja!
Na minha mão, uma é três e três é dez!
O primeiro trecho do refrão do meio faz uma referência a prática comum de vendedores (tanto aqueles de rua como algumas grandes lojas) de anunciar “promoções” sem que estas sejam de fato com preço mais barato. Aqui também há uma referência ao episódio de candidaturas laranjas do PSL, partido pelo qual o presidente Jair Bolsonaro se elegeu, nas eleições do ano passado.
É o bilhete premiado, vendido na rua
Aqui a referência é a um golpe comum aplicado Brasil afora, em que o estelionatário vende um bilhete de loteria que estaria premiado e depois foge com o dinheiro daquele que acreditou na história.
Malandro passando terreno na Lua!
Na sinopse do enredo, o carnavalesco lembrou da época em que golpistas comercializavam terrenos lunares, vendendo a ideia de que a lua seria habitada em algum momento. Isso aconteceu efetivamente no Brasil, no começo dos anos 1970. Além disso, há uma crítica às promessas de que tudo vai dar certo por parte de muitos políticos, quando só falta mesmo prometerem que haverá terrenos na lua para todo mundo. Também pode ser entendida como uma crítica a algumas religiões que prometem o céu aos fiéis que contribuírem financeiramente para a igreja.
Hoje, o vigário de gravata
Abençoa a mamata
Esse trecho aborda os vigários de hoje em dia: pastores engravatados que enganam fiéis com falsas promessas e ainda tem relação bastante umbilical com políticos de caráter duvidoso. Há também uma explícita referência ao presidente Jair Bolsonaro, que prometeu acabar com a corrupção (e a mamata) durante a campanha eleitoral e manteve práticas políticas tradicionais durante esse seu primeiro ano de mandato.
Lobo em pele de cordeiro
Referência a expressão popular utilizada para falar de alguém que parece boa pessoa mas não é.
Eu trago em três dias seu amor
¡La garantía soy yo!
Só trabalho com dinheiro
Mais uma vez, há no samba expressões que ficaram famosas na propaganda de estelionatários e charlatões.
Chamou o VAR, tá grampeado
Referência ao uso do VAR (sigla em inglês para árbitro auxiliar de vídeo) como forma de corrigir erros dos árbitros de futebol.
Vazou, deu sururu
O site The Intercept Brasil publicou uma série de reportagens baseadas em áudios e mensagens de texto entre membros da Operação Lava Jato que vazaram. Isso fez com que a Operação fosse contestada por um amplo setor da sociedade brasileira. “Dar sururu” é uma expressão utilizada como sinônimo de “deu confusão”.
Tem marajá puxando férias em Bangu!
Referência aos políticos que estão presos em Bangu, bairro carioca onde estão os principais presídios do estado.
Balança na rede
Abre a janela, aperta o coração
Referência a algumas ações típicas da internet: divagar mexendo na rede (mundial de computadores, a internet), abrir a janela e apertar o coração (do curtir no Instagram ou do match no Tinder).
O filtro é a fantasia da beleza
Na virtual roleta da desilusão
A parte final do samba traz uma reflexão acerca de aplicativos (como Instagram e Tinder) usados para paquera onde muitas vezes são usados mecanismos (os “filtros”) para mexer na qualidade das fotos.
Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu!
E o país inteiro assim sambou
Caiu na fake news!
No refrão que antecede o refrão principal é feita mais uma referência ao processo eleitoral de 2018, onde muitas mentiras circularam em grupos de whats app e foram decisivas para a vitória de Bolsonaro.
Meu povo chegou ôô!
A maré vai virar, laiá!
Na ginga, pra frente, lá vem São Clemente
Sem medo de acreditar!
O refrão principal vem com uma mensagem otimista, tanto em relação ao Brasil, como em relação a escola, muitas vezes prejudicada na apuração do carnaval carioca.